Medo de evacuar em crianças com autismo: quando o corpo aprende a reter
- Carolina Supino
- 23 de abr.
- 3 min de leitura
Atualizado: 11 de jun.

1. Quando o medo fala mais alto que o corpo
"Toda vez que chega a hora do cocô, ela foge. Se esconde no canto, chora, se enrijece toda." Esse tipo de relato é comum entre famílias de crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista) que convivem com o desafio da constipação.
Em muitos casos, evacuar deixa de ser um ato natural e se torna um processo doloroso, temido, cercado de resistência. Mais do que um sintoma intestinal, o medo de evacuar é uma expressão do corpo em estado de alerta. E ele precisa ser escutado.
2. Por que esse medo é tão comum no TEA?
O TEA envolve alterações na percepção sensorial, na rigidez comportamental e na comunicação corporal. Quando esses fatores se somam a uma experiência negativa (como dor para evacuar ou um cocô que ficou preso), o corpo aprende que evacuar é perigoso.
Entre os fatores mais comuns estão:
Hipersensibilidade visceral: sensações como pressão, estufamento ou necessidade de evacuar são amplificadas e podem gerar medo
Experiências traumáticas anteriores: dor intensa, evacuações involuntárias, punicão ou constrangimento
Dificuldade de expressar o que está sentindo: o corpo comunica o desconforto através de comportamentos, não palavras
Rigidez e medo do novo: transições como sair da fralda ou usar o vaso podem ser muito desafiadoras
3. Como esse medo aparece no dia a dia
Alguns sinais de que a criança está enfrentando um medo profundo de evacuar:
Se esconde, se encolhe ou foge ao sentir vontade
Prende o cocô por horas ou dias, mesmo com fezes amolecidas
Chora, grita, se enrijece ou demonstra agressividade perto da hora de evacuar
Pede fralda, se recusa a sentar no vaso ou só evacua em pé
Evacua na roupa mesmo sabendo onde deveria fazer
Esses comportamentos não são birra. São sinais de que o corpo não se sente seguro para soltar.

4. Não é só psicológico: é fisiológico também
A retenção repetida provoca uma distensão progressiva do reto, que perde sua capacidade de contração e sensibilidade. A criança deixa de perceber o momento certo de evacuar e, mesmo quando quer, muitas vezes não consegue.
Isso cria um ciclo de retenção - acúmulo - dor - medo - nova retenção. Romper esse ciclo exige intervenção clínica e um cuidado adaptado.
5. Como tratar o medo de evacuar em crianças com TEA
O tratamento é feito por etapas, sempre com escuta, observação e planejamento adaptado à realidade sensorial e emocional da criança:
Avaliação clínica e sensorial completa: entender padrões, histórico, alimentação, medos e ambiente
Desimpactação intestinal, quando indicado, com medicação segura e orientação visual
Criação de rotina estruturada e previsível para evacuar (horário fixo, local calmo, sem pressa)
Adaptação sensorial do ambiente: reduzir ruídos, ajustar temperatura, incluir brinquedos de conforto
Reforço positivo: elogios, adesivos ou recompensas lúdicas
Acompanhamento com equipe multidisciplinar (terapeutas ocupacionais, psicólogos, pedagogos, se necessário)
6. O papel da família: apoio sem pressão
Nunca forçar a evacuação ou constranger a criança
Validar o medo, explicando com palavras simples o que está acontecendo
Observar o que alivia e o que piora a situação
Ter paciência com os avanços e retrocessos: cada conquista é um passo valioso

7. Conclusão: medo de evacuar não é frescura — é um alerta
Quando uma criança com TEA entra em padrões de retenção e sofrimento para evacuar, o corpo está pedindo ajuda.
E existe, sim, um caminho para tratar isso com leveza, critério e escuta real.
É possível devolver à criança a confiança no próprio corpo — com um cuidado adaptado, respeitoso e baseado em evidências.

Dra. Carolina Supino | Cirurgia Pediátrica
Cuidado com base em evidência, escuta e respeito ao tempo da infância.
Atendimentos presenciais e por telemedicina, com acompanhamento próximo e criterioso.


📚 Referências bibliográficas
HYAMS, Jeffrey S. et al. Evaluation and treatment of functional constipation in children: A clinical report of the North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition. Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, v. 58, n. 2, p. 265–281, 2014.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24280007
TABBERS, Merit M. et al. Evaluation and treatment of functional constipation in infants and children: evidence-based recommendations from ESPGHAN and NASPGHAN. Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, v. 58, n. 2, p. 258–274, 2014.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24280013
McCLUSKEY, James et al. Functional constipation in children with neurodevelopmental disorders: a review. World Journal of Clinical Pediatrics, v. 9, n. 2, p. 12–21, 2020.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32099704
RAJINDRAJITH, Shaman et al. Constipation-related symptoms and quality of life in children with autism spectrum disorders. Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, v. 68, n. 5, p. 756–760, 2019.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30694857
ROME FOUNDATION. Rome IV Diagnostic Criteria for Functional Gastrointestinal Disorders in Children. 2016.Disponível em: https://theromefoundation.org
Comments